Edvaldo Rodrigues:
jornalista e escritor
Nilo Alves
No final da segunda metade
da década de 1980, muitos filhos do esquecido Norte de Goiás comia o “pão que o
diabo amassou”, exilados em terras distantes, buscando conhecimentos nas salas
de aula das renomadas escolas superiores nos estados do Pará, Maranhão, Rio de
Janeiro, São Paulo, Distrito Federal e, na sua grande maioria, na capital
goiana. Eu, ainda muito jovem, carregando no peito a dor da negação educacional
impostas às terras de Teotônio Segurado, compunha um especial grupo de
estudantes portuenses matriculados na UFT –
Universidade Federal de Goiás. Foi ali, na Concha Acústica daquela
instituição que tive meu primeiro contato com o cantor Nilo Alves, que já fazia
sucesso com suas canções no meio universitário.
Foi amizade à primeira
vista. De lá para cá, com o Tocantins passando de sonho libertário a uma
realidade em construção, no caminhar soberano das nossas conquistas,
fortalecemos os laços indissolúveis do companheirismo. Neste trilhar de
buscas, vivenciado a luta e a labuta
cotidiana, emolduramos em nossas almas uma parceria do gostar um do outro, do
respeitar os trabalhos literários que nossas mentes inventivas pescam nos
momentos de desilusão, de desesperança e, às vezes, impondo tortura no
desabrochar das paixões, que descontroladamente inundam nossos olhos com as
lágrimas dos desamores dilacerantes, que como pesadelos pairam no ar em forma
de nuvens de chumbo, a perturbar nosso viver sem amarras, que diuturnamente tentamos
moldar o universo soberano das artes.
Nilo Alves, banhado e
benzido pelos ramos da competência, se fez verdadeiramente um mosaico
artístico. Cantava, compunha, produzia, e tenha conversa franca e aberta com
seu violão de fala mansa, além de costurar com os fios retirados do novelo
literário, contos e crônicas embebidos de uma suavidade poética singular. Era
merecidamente integrante de um seleto grupo de artistas com cheiro de terra e
peixe, paridos nas barrancas dos rios Araguaia e Tocantins, dentre eles se
destacam expressividades como Genésio Tocantins, Braguinha Barroso, Maria Rita,
Juraildes da Cruz, Juarez Filho, Dorivam, Éverton dos Andes, Diomar Naves,
menestréis que nas últimas três décadas vêm esculpindo o aço com “inxó” de
madeira, para convencer que são ótimos no que fazem, e por isso merecedores de
reconhecimento.
Sabedor que sou desta dura
realidade em que labutam nossos artistas, e buscando pincelar de humor nessa
aprazível relação de amizade, resolvi então “aprontar” com meu irmão e parceiro
de jornada cultural Nilo Alves. Certa feita, quando ainda ocupava o cargo de
Secretário de Comunicação de Porto Nacional, intermediei junto a Secretaria de
Cultura do município portuense um show para o lançamento de um CD deste genial
cantor, músico, escritor e compositor. O espaço para o evento foi a Praça do
Avião, no Setor Vila Nova, onde naquele momento acontecia uma Feira
Gastronômica. Ali, ao som da algazarra noturna das várias gerações de
portuenses em confraternização, armei “minha arapuca” para apanhar um homem e
seu violão.
Como já era esperado, o show
de Nilo Alves foi muito prestigiado. Ele foi aplaudido entusiasmadamente pelo
público presente, que também comprou todos os CDs ali a disposição. Após o
evento, escolhemos uma mesa afastada da grande massa e assim passamos a
desenhar alguns projetos futuros. Ele, com a sua eloquência visionária impunha
a mim um silêncio observador. Foi por isso que meus olhos encontraram “Moco
Dizidério”, um jovem abobalhado amado por todos os portuenses. Alguns médicos
de cátedra refinada o diagnosticaram como Autismo. Outros doutores de gente,
atuantes nas periferias da cidade, afirmaram que era retardo mental. O certo é
que somente a parteira e rezadeira “Salustiana Bunda Baixa”, identificou a
causa da “moléstia” daquele rapaz: “era coisa de sangue”. Segundo ela, o jovem
era a cópia fiel do pai, “Jurandir Cara de Cu”.
“Jurandir Cara de Cu” não
falava, não ouvia e nem enxergava, mas era fazedor de menino. Botou dez filhos
no mundo, paridos por dez mulheres pertencentes a “tribos diferentes”. Seu
apelido era uma referência ao olho direito, quase encostado no esquerdo,
afundando a parte superior do nariz. Nada disso o fazia um homem triste, que
mesmo com todas estas deficiências vivia perambulando pelos aposentos íntimos
de algumas “quengas” de destaque da vagabundagem local, isso graças, segundo os
comentaristas de alcova da cidade, a sua virilidade e o enquadramento métrico
de seu instrumento sexual.
Nilo Alves, sentado numa
aconchegante cadeira de madeira e, acariciando seu violão que dormia no colo,
era puro êxtase por ter apresentado seu trabalho em Porto Nacional e receber
tanto apoio, mas não parava de reclamar. “Estou cansado. Carrego água em jacá
de ladeira arriba, todos os dias corto lenha com machado de borracha. É assim
que me sinto por não ter o reconhecimento merecido depois de tantos anos na
estrada. Às vezes penso em parar, mas vem uma apresentação como esta, aí
renascem as esperanças!!!” Quando me permitiu falar, injetei nele uma dose
cavalar de autoestima: “Rapaz, você é muito bom!!! Toda a coletividade
tocantinense admira seu trabalho, que já é parte da consciência cultural em
todos os quadrantes do Estado.” Um largo sorriso emoldurou seu rosto.
Meu plano era testar a
segurança artística de Nilo Alves e “Moco Dizidério” era o gatilho principal
daquela “prezepada”. E ali estava ele,
sentado num banco, “rosnando com seus botões”. Sabendo que aquele jovem
especial decorava imediatamente tudo que ouvia, resolvi montar uma “pegadinha”
para meu amigo cantor, e com a desculpa de ir ao banheiro me desloquei em sua
direção e disfarçadamente a ele apresentei meu plano, isso depois de depositar
no bolso de sua camisa uma nota de vinte reais, ao mesmo tempo em que o
incentivei a comer pipoca e beber refrigerante, seu passatempo predileto. Após
alguns sussurrantes ensaios, constatei que o “texto” estava na ponta da língua,
e aí então combinei o sinal que daria para ele abordar a nossa “vitima”.
Após aquela preparação
“teatral”, retornei ao convívio verborrágico de Nilo Alves e dali sinalizei a
“Moco Dizidério” que era chegada a hora da sua atuação. Ele aproximou da nossa
mesa, parou diante do renomado cantor tocantinense e emendou: “Quero um
autógrafo do senhor!!!”. Com a alegria estampado no rosto o artista se
movimentou para atender mais um “fã”. Antes dele apontar a caneta para desenhar
seu nome num pedaço de papel, o filho de “Jurandir Cara de Cu” perguntou: “O
senhor é aquele artista, aquele que pinta quadros, né? O senhor pinta os quadro
de Jesus Cristo, né?” Senti a mesa tremer, e com muita dificuldade segurei o
riso.
Nilo Alves olhou raivoso
para “Moco Diziderio”, e disse bem alto: “Quadro de Jesus Cristo é uma porra,
eu sou é cantor!!! Seu babaca, você não viu o meu show? Eu sou é cantor e não
pintor!!!”. O rapaz se retirou em silencio e novamente ocupou seu banco, na
alça de mira do meu olhar. E nosso artista desabafou: “Não aguento mais isso.
Você compõe, musicaliza, produz, escreve, trabalha com seriedade, noites e
noites sem dormir, dias e dias passando necessidade, pois esta é a realidade de
quem faz arte no Tocantins, e ainda não somos reconhecidos por isso. Vou embora
do Tocantins, pois isso não é justo”. Meu riso preso ameaçava desatar as
amarras.
Em meio ao silencio que
reinou em volta da nossa mesa, “Moco Diziderio” se aproximou novamente e lascou
outra pergunta: “O senhor só pinta quadros de Jesus Cristo, ou pinta do capeta
Também?” Nilo Alves ameaçou levantar-se, e alterado retrucou: “Seu porra, seu
caralho, eu não pinto quadro de ninguém, nem de Deus nem do diabo. Eu sou é
cantor, compositor. Que desgraça de quadro de Jesus é essa? Que caralho a
quatro é esse?. Você já esta passando dos limites, eu sou é cantor seu
imbecil!!” Neste momento me posicionei entre os dois, pois o clima ferveu. E meu
amigo então retrucou: “Chega!!! Vou mudar de vida, vou ser camelô, vou montar
um cabaré, e ser mais respeitado.”
Alguns minutos depois “Moco
Diziderio” voltou, aproximou da nossa mesa e lascou: “Agora que me lembrei
direito do senhor. Na semana passada o senhor vendeu um quadro de Jesus Cristo
que pintou para minha vó, ela lhe pagou e você sumiu como troco!!!” Ciente do
perigo que o jovem corria, o peguei pelo braço e o conduzi até o local onde
sempre preferia sentar. Após depositar mais dez reais no bolço de sua camisa
retornei para a convivência raivosa do meu irmão e amigo Nilo Alves, e ele
vociferava: “Vou deixar de cantar, vou embora do Tocantins, pois Isso aqui é
revoltante, ninguém valoriza o seu trabalho. Acho que não vale a pena insistir,
não compensa continuar enxugando gelo”. Nada disso aconteceu. Ele continuou
cantando, compondo, escrevendo maravilhosamente e fortalecendo sua persistência
em furar pedra com prego de papelão. Foi acima de tudo um resistente, um
vencedor. Um artista à frente do seu tempo.