segunda-feira, 15 de março de 2021

Homenagem a meu grande amigo Nilo Alves: furando pedra com prego de papelão

Edvaldo Rodrigues: jornalista e escritor

Nilo Alves

No final da segunda metade da década de 1980, muitos filhos do esquecido Norte de Goiás comia o “pão que o diabo amassou”, exilados em terras distantes, buscando conhecimentos nas salas de aula das renomadas escolas superiores nos estados do Pará, Maranhão, Rio de Janeiro, São Paulo, Distrito Federal e, na sua grande maioria, na capital goiana. Eu, ainda muito jovem, carregando no peito a dor da negação educacional impostas às terras de Teotônio Segurado, compunha um especial grupo de estudantes portuenses matriculados na UFT –  Universidade Federal de Goiás. Foi ali, na Concha Acústica daquela instituição que tive meu primeiro contato com o cantor Nilo Alves, que já fazia sucesso com suas canções no meio universitário.

Foi amizade à primeira vista. De lá para cá, com o Tocantins passando de sonho libertário a uma realidade em construção, no caminhar soberano das nossas conquistas, fortalecemos os laços indissolúveis do companheirismo. Neste trilhar de buscas,  vivenciado a luta e a labuta cotidiana, emolduramos em nossas almas uma parceria do gostar um do outro, do respeitar os trabalhos literários que nossas mentes inventivas pescam nos momentos de desilusão, de desesperança e, às vezes, impondo tortura no desabrochar das paixões, que descontroladamente inundam nossos olhos com as lágrimas dos desamores dilacerantes, que como pesadelos pairam no ar em forma de nuvens de chumbo, a perturbar nosso viver sem amarras, que diuturnamente tentamos moldar o universo soberano das artes.

Nilo Alves, banhado e benzido pelos ramos da competência, se fez verdadeiramente um mosaico artístico. Cantava, compunha, produzia, e tenha conversa franca e aberta com seu violão de fala mansa, além de costurar com os fios retirados do novelo literário, contos e crônicas embebidos de uma suavidade poética singular. Era merecidamente integrante de um seleto grupo de artistas com cheiro de terra e peixe, paridos nas barrancas dos rios Araguaia e Tocantins, dentre eles se destacam expressividades como Genésio Tocantins, Braguinha Barroso, Maria Rita, Juraildes da Cruz, Juarez Filho, Dorivam, Éverton dos Andes, Diomar Naves, menestréis que nas últimas três décadas vêm esculpindo o aço com “inxó” de madeira, para convencer que são ótimos no que fazem, e por isso merecedores de reconhecimento.

Sabedor que sou desta dura realidade em que labutam nossos artistas, e buscando pincelar de humor nessa aprazível relação de amizade, resolvi então “aprontar” com meu irmão e parceiro de jornada cultural Nilo Alves. Certa feita, quando ainda ocupava o cargo de Secretário de Comunicação de Porto Nacional, intermediei junto a Secretaria de Cultura do município portuense um show para o lançamento de um CD deste genial cantor, músico, escritor e compositor. O espaço para o evento foi a Praça do Avião, no Setor Vila Nova, onde naquele momento acontecia uma Feira Gastronômica. Ali, ao som da algazarra noturna das várias gerações de portuenses em confraternização, armei “minha arapuca” para apanhar um homem e seu violão.

Como já era esperado, o show de Nilo Alves foi muito prestigiado. Ele foi aplaudido entusiasmadamente pelo público presente, que também comprou todos os CDs ali a disposição. Após o evento, escolhemos uma mesa afastada da grande massa e assim passamos a desenhar alguns projetos futuros. Ele, com a sua eloquência visionária impunha a mim um silêncio observador. Foi por isso que meus olhos encontraram “Moco Dizidério”, um jovem abobalhado amado por todos os portuenses. Alguns médicos de cátedra refinada o diagnosticaram como Autismo. Outros doutores de gente, atuantes nas periferias da cidade, afirmaram que era retardo mental. O certo é que somente a parteira e rezadeira “Salustiana Bunda Baixa”, identificou a causa da “moléstia” daquele rapaz: “era coisa de sangue”. Segundo ela, o jovem era a cópia fiel do pai, “Jurandir Cara de Cu”.

“Jurandir Cara de Cu” não falava, não ouvia e nem enxergava, mas era fazedor de menino. Botou dez filhos no mundo, paridos por dez mulheres pertencentes a “tribos diferentes”. Seu apelido era uma referência ao olho direito, quase encostado no esquerdo, afundando a parte superior do nariz. Nada disso o fazia um homem triste, que mesmo com todas estas deficiências vivia perambulando pelos aposentos íntimos de algumas “quengas” de destaque da vagabundagem local, isso graças, segundo os comentaristas de alcova da cidade, a sua virilidade e o enquadramento métrico de seu instrumento sexual.

Nilo Alves, sentado numa aconchegante cadeira de madeira e, acariciando seu violão que dormia no colo, era puro êxtase por ter apresentado seu trabalho em Porto Nacional e receber tanto apoio, mas não parava de reclamar. “Estou cansado. Carrego água em jacá de ladeira arriba, todos os dias corto lenha com machado de borracha. É assim que me sinto por não ter o reconhecimento merecido depois de tantos anos na estrada. Às vezes penso em parar, mas vem uma apresentação como esta, aí renascem as esperanças!!!” Quando me permitiu falar, injetei nele uma dose cavalar de autoestima: “Rapaz, você é muito bom!!! Toda a coletividade tocantinense admira seu trabalho, que já é parte da consciência cultural em todos os quadrantes do Estado.” Um largo sorriso emoldurou seu rosto.   

Meu plano era testar a segurança artística de Nilo Alves e “Moco Dizidério” era o gatilho principal daquela “prezepada”.  E ali estava ele, sentado num banco, “rosnando com seus botões”. Sabendo que aquele jovem especial decorava imediatamente tudo que ouvia, resolvi montar uma “pegadinha” para meu amigo cantor, e com a desculpa de ir ao banheiro me desloquei em sua direção e disfarçadamente a ele apresentei meu plano, isso depois de depositar no bolso de sua camisa uma nota de vinte reais, ao mesmo tempo em que o incentivei a comer pipoca e beber refrigerante, seu passatempo predileto. Após alguns sussurrantes ensaios, constatei que o “texto” estava na ponta da língua, e aí então combinei o sinal que daria para ele abordar a nossa “vitima”.

Após aquela preparação “teatral”, retornei ao convívio verborrágico de Nilo Alves e dali sinalizei a “Moco Dizidério” que era chegada a hora da sua atuação. Ele aproximou da nossa mesa, parou diante do renomado cantor tocantinense e emendou: “Quero um autógrafo do senhor!!!”. Com a alegria estampado no rosto o artista se movimentou para atender mais um “fã”. Antes dele apontar a caneta para desenhar seu nome num pedaço de papel, o filho de “Jurandir Cara de Cu” perguntou: “O senhor é aquele artista, aquele que pinta quadros, né? O senhor pinta os quadro de Jesus Cristo, né?” Senti a mesa tremer, e com muita dificuldade segurei o riso.

Nilo Alves olhou raivoso para “Moco Diziderio”, e disse bem alto: “Quadro de Jesus Cristo é uma porra, eu sou é cantor!!! Seu babaca, você não viu o meu show? Eu sou é cantor e não pintor!!!”. O rapaz se retirou em silencio e novamente ocupou seu banco, na alça de mira do meu olhar. E nosso artista desabafou: “Não aguento mais isso. Você compõe, musicaliza, produz, escreve, trabalha com seriedade, noites e noites sem dormir, dias e dias passando necessidade, pois esta é a realidade de quem faz arte no Tocantins, e ainda não somos reconhecidos por isso. Vou embora do Tocantins, pois isso não é justo”. Meu riso preso ameaçava desatar as amarras.

Em meio ao silencio que reinou em volta da nossa mesa, “Moco Diziderio” se aproximou novamente e lascou outra pergunta: “O senhor só pinta quadros de Jesus Cristo, ou pinta do capeta Também?” Nilo Alves ameaçou levantar-se, e alterado retrucou: “Seu porra, seu caralho, eu não pinto quadro de ninguém, nem de Deus nem do diabo. Eu sou é cantor, compositor. Que desgraça de quadro de Jesus é essa? Que caralho a quatro é esse?. Você já esta passando dos limites, eu sou é cantor seu imbecil!!” Neste momento me posicionei entre os dois, pois o clima ferveu. E meu amigo então retrucou: “Chega!!! Vou mudar de vida, vou ser camelô, vou montar um cabaré, e ser mais respeitado.”

Alguns minutos depois “Moco Diziderio” voltou, aproximou da nossa mesa e lascou: “Agora que me lembrei direito do senhor. Na semana passada o senhor vendeu um quadro de Jesus Cristo que pintou para minha vó, ela lhe pagou e você sumiu como troco!!!” Ciente do perigo que o jovem corria, o peguei pelo braço e o conduzi até o local onde sempre preferia sentar. Após depositar mais dez reais no bolço de sua camisa retornei para a convivência raivosa do meu irmão e amigo Nilo Alves, e ele vociferava: “Vou deixar de cantar, vou embora do Tocantins, pois Isso aqui é revoltante, ninguém valoriza o seu trabalho. Acho que não vale a pena insistir, não compensa continuar enxugando gelo”. Nada disso aconteceu. Ele continuou cantando, compondo, escrevendo maravilhosamente e fortalecendo sua persistência em furar pedra com prego de papelão. Foi acima de tudo um resistente, um vencedor. Um artista à frente do seu tempo.

 

 

 

 

 

 

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